sábado, 28 de julho de 2012

AND SOON THE DARKNESS (Robert Fuest, 1970)

É tão perfeita a articulação narrativa deste filme que sempre achei difícil de compreender a hostilidade crítica com que foi recebido, e a indiferença com que ainda hoje é encarado. Sobretudo se tivermos em conta a magnitude do talento por detrás do projecto, quase todos veteranos da recém-cancelada série de culto THE AVENGERS (1961-1969). É como se por apresentar um corte tão radical com a série hiper-moderna, possa ter desiludido aqueles que esperavam uma extravagância pop como a que Fuest desencadearia apenas um ano mais tarde com o díptico de obras protagonizadas pelo comicamente sinistro Dr. Phibes (Vincent Price), ou o sucesso dos contos cruéis que Brian Clemens, produtor e argumentista, verteria na sua série de televisão, THRILLER (1973-1976). Mas AND SOON THE DARKNESS nunca se afasta de um realismo quotidiano, banal, que antepõe ao factor choque que começava a dominar o cinema de horror, uma sensação de opressão tornada ainda mais sufocante pela tangibilidade da situação representada.

Na realidade, todo o filme é um constante e sustentado exercício de frustração das expectativas do espectador, bombardeando-o com pistas contraditórias, com elementos de estranheza que nunca são devidamente explicados, tal como nunca são explicados os pequenos actos da vida do dia-a-dia. E a primeira surpresa do filme encontra-se, desde logo, na sequência inicial, um apontamento da mais sublime ironia, que o espectador só compreenderá mais tarde, depois de se ter deixado arrastar pelo engodo quase hitchcockiano. O filme abre com o sol, a pique, entrevisto por entre a fronde de uma árvore. A câmara detém-se por um instante no sacudir dos galhos na brisa pachorrenta, antes de deslizar para a esquerda e para baixo, centrando a sua atenção em duas jovens ciclistas numa aprazível estrada arborizada. O tema musical, descontraído, de Laurie Johnson (que recorrerá ao longo do filme, emanando repetidamente de estações de rádio, como que buscando deter o fluxo imparável do tempo) contrasta com as implicações sinistras do título, que ameaça com o cair da noite. O movimento da câmara, afastando-se do sol, como que marca o tiro de partida para uma mortal contagem decrescente.

E a figura das protagonistas, afastando-se do espectador ao longo da estrada aparentemente interminável, como um Verão à Ray Bradbuy, antecipa a distância que perpassa todo o filme, separando os personagens, forçando os olhares, sublinhando um isolamento do humano nas bucólicas paisagens do norte de França. Tal como a personagem principal, Jane (Pamela Franklin), também o espectador será mantido à distância, correndo atrás dos acontecimentos, com Fuest a deixá-lo aproximar-se apenas em determinadas ocasiões, sobretudo nos raros momentos de choque (mais eficazes pela sua escassez), e sobretudo nos instantes em que a câmara nos aproxima dos olhos das personagens, como que convidando-nos a participar dos processos internos das suas mentes.



A primeira vez que nos é dado apanhar Jane e Cathy (Michele Dotrice), duas enfermeiras em férias no norte de França, estas estão numa esplanada duma qualquer vilória servida apenas por estradas secundárias. Cathy é o centro das atenções de três rapazolas que, numa mesa vizinha, não escondem o seu interesse, e o posicionamento da câmara, rente ao solo, com as pernas da rapariga em primeiro plano, torna o espectador (pelo menos, o masculino de persuasão heterossexual) cúmplice dessa atenção. O olhar – aquilo que será permitido ver e aquilo que deve permanecer oculto – é um tema recorrente do filme, com os mais diversos obstáculos (a roda de um carro, o tronco de uma árvore, a própria distância) a interpor-se subitamente entre o espectador e a câmara. Câmara que não é admitida em todo o lado, obrigada a permanecer quase sempre no exterior, como que preservando a intimidade dos personagens, escondendo segredos que apenas nos é permitido intuir. O olhar, porém, num filme centrado em duas jovens mulheres atractivas e vestidas de forma reveladora, não adquire a misoginia típica dos posteriores slasher movies (a não ser, mais tarde, no momento em que o espectador é colocado na posição do assassino, enquanto este observa Cathy a espalhar protector solar no peito, com a mão a introduzir-se perigosamente sob a blusa), e Cathy, indiferente aos olhares que lhe são dirigidos, tem o seu centrado num atraente jovem francês que ela própria fotografa com a reticente cumplicidade da amiga.


Este, porém, não permanece indiferente ao olhar da jovem inglesa e, quando voltam a fazer-se ao caminho, segue-as na sua motoreta. O interesse de Cathy torna a situação num jogo de sedução não declarado; no entanto, os primeiros sinais de inquietação não tardam a manifestar-se, quando, depois de as ter ultrapassado, o encontram à sua espera à entrada do cemitério local. Elas não param, e o jovem francês detém-se junto da campa de uma jovem loura, um gesto que tem tanto de normal como de inquietante, recordando-nos singelamente de como a vida é efémera e a morte pode surgir a qualquer momento, em qualquer idade. Como que reforçando essa ideia, poucos instantes depois – após terem parado numa clareira para apanhar sol – as duas colegas recordam o caso da morte de um recém-nascido no hospital onde ambas trabalham, e, subitamente, sem necessidade de fugir do mais quotidianamente banal, Fuest (e os brilhantes argumentistas Terry Nation e Brian Clemens) estabeleceram uma atmosfera de inquietude, ameaça e incerteza.
A mesmidade da paisagem que as rodeia, bela e pacata, evoca uma certa constância universal, uma reconfortante imutabilidade que se reflecte no anonimato de carros que atravessam a estrada infinita, percebidos apenas pelo som do motor, numa metáfora eficaz e recorrente. É só mais tarde quando nos começamos a aperceber de que Jane, agora sozinha, se cruza com todos aqueles carros que antes ouvimos, ou de que tivemos apenas um relance fugaz – mais, que chega a viajar num deles –, nos apercebemos de que são as pequenas decisões inconsequentes que nos mudam a vida para sempre. Jane quer seguir viagem; “I don’t particularly want to be on the roads after dark”, diz ela, procurando convencer Cathy, mas esta mostra-se renitente, diz-se farta de obedecer, diz-se farta daquelas férias de passeio. Quer festas, diversão e rapazes (“Swinging Laundrun!”, exclama, jocosa, quando passam por uma pacata aldeia francesa com esse nome). Especialmente, percebe Jane, quer o misterioso jovem que espera ver passar novamente na estrada. A altercação provoca a separação das duas amigas e Jane prossegue viagem sozinha.


E sozinha é verdadeiramente o conceito operativo do filme, pois a partir do momento em que as jovens se separam, o mundo – e os planos cinematográficos, cada vez mais apertados – parecem fechar-se sobre elas. Cathy, que espreitamos cumplicemente enquanto espalha creme pelo corpo, desperta da sonolência estival para descobrir que lhe falta um par de cuequinhas da roupa que pusera a secar. Pior ainda, descobre que alguém, que tem a impressão de a espreitar entre a folhagem, inutilizou uma das rodas da sua bicicleta. Será a última vez que a vemos…


A partir desse momento, o nosso foco de atenção é Jane, cada vez mas inquieta com a demora da amiga, por quem espera na esplanada de um típico café de estrada. Incapaz de falar a língua, isolada por essa incapacidade, torna-se mais atenta aos crescentes sinais de inquietação: a mulher do café, Madame Lassal (Hana-Maria Pravda), que lhe pergunta se viaja sozinha e que lhe tenta fazer compreender que aquela estrada não é recomendável (“Cette route, elle est trés mauvaise”). O ar de inquietação, quase alucinação, apenas piora aquando da chegada de Mr. Lassal (Claude Bertrand) e da tremenda discussão que se gera – e quão benéfico é para o próprio espectador que não fale francês a interposição daquela barreira linguística; embora, quem acompanhe as falas, perceba que a mulher pergunta ao marido o que andou a fazer para demorar duas horas a dar conta de um recado que não deveria tardar mais do que um quarto de hora (um sempre presente barril na berma da estrada, onde algo está a ser queimado, apenas contribui para aumentar a desconfiança). O jovem desconhecido, Paul (o habitué do género, Sandor Elès), presta-se a ajudar Jane a encontrar a amiga, apresentando-se como um inspector da Sureté que trabalhou naquela zona, três anos antes, quando naquela mesma estrada, e por essa mesma altura do ano, uma jovem turista holandesa foi brutalmente assassinada, sem que o culpado tenha sido descoberto. No entanto, a sua história, o seu comportamento, aquilo que diz e aquilo que oculta, a forma quase jocosa como aventa a hipótese de Cathy estar apenas escondida para tentar assustar Jane, não batem certo com aquilo que diz ser e, quando este a deixa num outro café, com o pretexto de investigar os bosques, Jane pede boleia a uma professora inglesa radicada naquela zona (Clare Kelly) para que a leve a casa do Gendarme (um fascinante John Nettleton).


É a professora quem a põe a par do que aconteceu à jovem holandesa, mas de uma forma que é tudo menos tranquilizadora: “She was young and pretty. They always are, I suppose Loathsome business. It was more than murder, if you know what I mean. Still, she was asking for trouble… alone on the road.”, o que de certa forma ecoa a posição de Linda Williams (“When the Woman Looks”, 1983), quando observa que nas décadas desde que PSYCHO (1960) e PEEPING TOM (1960) criaram a tradição do “herói” psicopata, umas das mais significativas mudanças no género foi o aprofundamento da responsabilidade da mulher pelo horror que a vitimiza. E o olhar que a professora lança a Jane, quando a deixa à porta da casa do Gendarme, é um olhar de preocupação pelo destino de uma conterrânea inocente, ou o olhar lúbrico de uma potencial predadora sexual com interesses ulteriores?





Nesta altura, o próprio espectador padece da desconfiança – da quase paranóia – que faz Jane suspeitar de tudo e todos. Cada gesto (o fechar da porta de um carro, o manusear das cuequinhas encontradas no local do desaparecimento de Cathy, o pegar numa faca de cozinha) adquire um duplo sentido, um potencial de ameaça que contamina as reacções de protagonista e espectador. Cada personagem que aparece é lida como potencial suspeito – o casal Lassal, o jovem Paul, o velho demente (John Franklyn), pai do Gendarme, que vemos acompanhando a acção no meio de um campo, no meio de nada, o próprio Gendarme, que madame Lassal nos diz ser “trouble”, todos parecem ter algo a esconder. Que são os papéis que Lassal queima à mão-cheia no bidão? Porque destruiu Paul o rolo fotográfico que encontrou na câmara de Cathy? Que quererá dizer o estranho fascínio que o velhote demonstra pela peça de roupa interior da jovem inglesa? É um dos grandes méritos de Nation, Clemens e Fuest, lograrem a transformação de uma pacata aldeola – ainda que reduzida a um microcosmo de personagens – pelo simples expediente da barreira linguística, num locus horribilis, de permanente ameaça, forçando Jane, com a cumplicidade do espectador, a procurar refúgio junto do culpado, a quase matar à pedrada, numa inesperada explosão de violência, o seu verdadeiro protector, e a descobrir o verdadeiro horror num local pacato e solarengo. Quando o mistério é finalmente revelado, olhamos para trás e vemos todos aqueles comportamentos que tanto nos perturbaram como o que realmente eram: actos do quotidiano, tão misteriosos e reveladores como qualquer acto realizado em privado.


Mérito também, de um exemplar elenco de actores, com especial destaque para Pamela Franklin (LEGEND OF HELL HOUSE), cuja expressividade corporal e (sobretudo) do olhar é exemplar na projecção de uma sensação de fragilidade, sensibilidade e inteligência, e John Nettleton, que consegue transmitir de forma económica (mas tão eficiente) os demónios interiores que o animam a cometer os actos de barbárie. À vez capaz de incutir confiança e receio (a relação dele com Lassal é um magnífico exercício de tensão sublimada), e deixar transparecer confusão e fatalismo, é de lamentar que não tenha sido mais utilizado noutros projectos fora do seu habitat natural, que parece ser a televisão (YES, MINISTER entre outras séries).

No final do filme, uma chuva de Verão parece querer limpar da face da terra os acontecimentos dessa tarde que não chegou ao fim. Numa deliciosa ironia, a noite que tão ameaçadora se prometia desde os créditos iniciais não chega a cair. Todo o horror acaba por desenrolar-se em plena luz do dia, num perfeito dia de sol, luminosamente fotografado por Ian Wilson. No seu clássico Nightmare Movies (1988/2011), Kim Newman escreve: “unity of space and time is a necessary underpinning for the bad dream, and Night of the Living Dead – like The Texas Chainsaw Massacre, The Hills Have Eyes, Halloween and The Evil Dead – takes place in a limited area during a single night.” (p.13) AND SOON THE DARKNESS subverte inteligentemente essa unidade, concentrando a acção num trecho de estrada e numa única tarde. O pesadelo emerge de um monstro bem terra-a-terra, e não é menos eficaz por isso.


O filme foi o primeiro a ser produzido sob a égide da Associated British Production Company, um ambicioso programa de produção de filmes britânicos dirigido pelo consagrado realizador Bryan Forbes, que tinha sido nomeado Director de Produção em 1969. Forbes viria a demitir-se em 1971, desiludido com os resultados e com a dificuldade de financiar os seus projectos preferidos. Ironicamente, e de acordo com British Film Institute, o projecto é hoje essencialmente recordado por dois filmes infantis, THE RAILWAY CHILDREN (Lionel Jeffries, 1970) e THE TALES OF BEATRIX POTTER (Reginald Mills, 1971), para além de ter propiciado o grande sucesso de THE GO-BETWEEN (1970) de Joseph Losey.

Uma ideia que não me sai da cabeça, tendo em conta o contexto histórico e social da época, é se o personagem do Gendarme, como disse magistralmente desempenhado por John Nettleton, não seria um comentário discreto ao general De Gaulle, que vetara a entrada do Reino Unido na CEE em 1963, numa suprema humilhação o governo Macmillan, e depois novamente em 1964, já sob Wilson, e que acabara por apresentar a sua resignação da presidência francesa em 1969. Pode não passar de uma coincidência, mas o aspecto físico de uma figura de autoridade francesa – como o Gendarme, cuja farda evoca o icónico uniforme gaulista – que depreda aquele símbolo da civilização britânica que é a enfermeira, presta-se a leituras políticas inevitáveis (e não de todo descabidas, se considerarmos que quer o realizador, quer os argumentistas, eram alumni da série THE AVENGERS, onde a política internacional era um subtexto sempre presente).

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Uma Década Sangrenta


Cronologicamente, a década de 70 do século XX estende-se de 01 de Janeiro de 1971 a 31 de Dezembro de 1980. No que toca à década enquanto periodo identificável por uma comunalidade de elementos, temas e formas de tratamento, e no que toca ao cinema de Horror, podemos dizer que esta se terá iniciado em 1968, com o surgimento de NIGHT OF THE LIVING DEAD (George Romero) e ROSEMARY'S BABY (Roman Polanski), e ter-se-á estendido efectivamente até 1980, quando Sean S. Cunningham cristalizou em FRIDAY THE 13TH (1980) os elementos do slasher movie inaugurado dois anos antes no HALLOWEEN de John Carpenter (1978). Não obstante tais factos, a percepção popular leva a identificar a década de 70 com o período compreendido entre 01 de Janeiro de 1970 e 31 de Dezembro de 1979. Assim, é meramente por uma convenção de facilidade na procura de determinados títulos que este blogue segue esta última (e incorrecta) opção.